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sábado, 13 de dezembro de 2008

Quem foi Jesus?

Quem foi Jesus?
Ele não nasceu em Belém, teve vários irmãos e sua morte passou quase despercebida no Império Romano. A história e a arqueologia desencavam o Jesus histórico - um homem bem diferente daquele descrito nos evangelhos
Texto Rodrigo Cavalcante

Foi um dia de trabalho como outro qualquer. Depois da festa da Páscoa do ano 3790 do calendário hebraico, a maioria dos camponeses seguia sua rotina normalmente, assim como os coletores de impostos, os pescadores, os soldados romanos, os carpinteiros, os sacerdotes e as prostitutas. Em Jerusalém, contudo, algumas pessoas deviam estar comentando o tumulto do dia anterior, que resultou na morte de um judeu. Nada que não estivessem acostumados a ouvir. Naquele tempo, a cidade já era palco de conflitos político-religiosos sangrentos e quase sempre algum agitador morria por incitar a rebelião contra os romanos, que governavam a região com o apoio da elite judaica do Templo de Jerusalém. Dessa vez, o fuzuê foi causado por um judeu camponês chamado Yeshua (Jesus em hebraico), que foi aprisionado e condenado à morte por ter desafiado o poder romano e o templo em plena Páscoa. "Se você quisesse chamar a atenção de multidões para as suas idéias, essa era a data ideal", afirma Richard Horsley, professor de ciências da religião na Universidade de Massachusetts e autor do livro Bandidos, Profetas e Messias – Movimentos Populares no Tempo de Jesus. "A festa tinha um forte conteúdo político, já que comemorava a libertação dos hebreus do Egito, que agora estavam sob o domínio dos romanos."
No meio da multidão (imagine a cidade paulista de Aparecida do Norte em dia de peregrinação), pouca gente deve ter se comovido com a prisão e morte de mais um judeu agitador – a não ser um punhado de parentes e amigos pobres. Mas nem eles poderiam imaginar que a cruz em que Jesus pagou sua sentença seria, no futuro, o símbolo mais venerado do mundo. Da Basílica de São Pedro, no Vaticano, à igrejinha da Assembléia de Deus encravada no interior da floresta Amazônica, a cruz se tornou o símbolo de fé para mais de 2 bilhões de pessoas em todo o planeta. Sua morte dividiu, literalmente, a história em antes e depois dele. Mas, afinal, quem foi Jesus?
Pode parecer estranho, mas para os estudiosos há pelo menos dois Jesus. O primeiro, que dispensa apresentações, é o Cristo (o ungido, em grego), cuja história contada pelos 4 evangelistas deixa claro que ele é o enviado de Deus para salvar os homens com a sua morte. Os judeus costumavam sacrificar animais como cordeiros no templo para se purificarem. Ao morrer na cruz, Cristo torna-se o símbolo do cordeiro enviado por Deus para tirar o pecado dos homens e do mundo.
O outro Jesus, já citado no início da matéria, é Yeshua, o homem que morreu sem chamar muita atenção dos cidadãos do Império Romano. Além dos evangelhos – que não podem ser considerados fontes imparciais de sua vida, já que foram escritos por seus seguidores – há apenas uma menção direta a ele citada pelo historiador judeu Flávio Josefo, que escreve sobre sua morte no livro Antiguidades Judaicas, feito provavelmente no fim do século 1.
Para os pesquisadores, essa falta de citações seria um indício da pouca repercussão que Jesus teria tido para os cronistas da época. "Se existisse um grande jornal em Israel no tempo de Jesus, sua morte provavelmente seria noticiada no caderno de polícia, e não na primeira página", diz John Dominic Crossan, professor de estudos religiosos da Universidade de Paulo, em Chicago, EUA. Autor dos livros O Jesus Histórico – A Vida de um Camponês Judeu no Mediterrâneo e Excavating Jesus – Beneath the Stones, Behind the Texts ("Escavando Jesus – Por Baixo das Pedras, por Trás dos Textos", inédito no Brasil), ele diz que a escassez de fontes diretas sobre Jesus não significa que seja impossível recompor a vida do homem de carne e osso – e não apenas do mito – que morreu em Jerusalém. "A interpretação correta dos textos históricos e a arqueologia estão trazendo surpreendentes revelações sobre o Jesus histórico", afirma Crossan.
Uma dessas revelações pode estar contida numa pequena caixa de pedra cor de areia encontrada em Jerusalém com uma inscrição feita em língua e caligrafia de 2 mil anos atrás. Ao lê-la em aramaico, da direita para esquerda, como a maioria das línguas semitas, está escrito inicialmente "Yaákov, bar Yosef", ou seja: Tiago, filho de José. E continua, mais desgastada, "akhui di..." irmão de "Yeshua", Jesus. Isso mesmo. Segundo André Lemaire, especialista em inscrições do período bíblico da Universidade de Sorbonne, em Paris, há uma alta probabilidade de que essa pequena caixa tenha sido usada para guardar os ossos de Tiago (são Tiago, para os católicos), o mesmo do Novo Testamento, já que a possibilidade de que a associação entre esses 3 nomes seja uma referência a outras pessoas é estatisticamente baixa.
Apesar de não ter sido encontrada num sítio arqueológico (como foi comprada por um colecionador num antiquário, os riscos de fraude seriam maiores), ela poderá se tornar a primeira evidência material associada a Jesus. "Caso fique provado que a inscrição é verdadeira, a descoberta levantará uma série de novas questões", diz Crossan. "Vamos ter que nos perguntar, por exemplo, se termos como irmão e pai significam exatamente o mesmo que hoje: pai e irmão de sangue.
Apesar de o Evangelho de São Mateus, no capítulo 13, versículos 55-56, citar: "Porventura não é este o filho do carpinteiro? Não se chamava sua mãe Maria, e seus irmãos Tiago, e José, e Simão, e Judas: e suas irmãs não vivem elas todas entre nós?", a Igreja sempre pregou aos fiéis que irmão e irmã, nesse caso, significavam apenas primos ou um forte vínculo de amizade e companheirismo entre todos os que faziam parte de um grupo. "Como esse é um campo cheio de fé e paixões, a busca do Jesus histórico sempre foi um desafio", diz André Chevitarese, professor de história antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos maiores especialistas sobre o tema no país. "Enquanto um religioso conservador ressalta a dimensão espiritual da figura de Jesus, um teólogo da libertação vai buscar nele sua atuação como um revolucionário político."
Mesmo que a diversidade de visões de Jesus seja proporcional ao número de igrejas, correntes e seitas que existem em seu nome, historiadores e arqueólogos estão conseguindo reconstituir como era o mundo em que ele vivia: um retrato fascinante da política, da religião, da economia, da arquitetura e dos hábitos cotidianos que devem ter moldado a vida de um homem bem diferente daquele retratado pelas imagens renascentistas que povoam a imaginação da maioria dos cristãos. A começar pela aparência. Baseados no estudo de crânios de judeus que viviam na região na época, os pesquisadores dizem que a fisionomia de Jesus deveria ser mais próxima da de um árabe moderno. "Em tempos turbulentos como o de hoje, ele provavelmente teria dificuldades de passar pela alfândega de um aeroporto europeu ou americano", diz Chevitarese.

Um presépio diferente
Imagine que neste Natal você pudesse entrar numa máquina do tempo para visitar Jesus recém-nascido. Se isso fosse possível, você teria algumas surpresas. Ao programar a engenhoca para o ano zero, provavelmente você iria se deparar com um menino de 4 anos. É que Jesus deve ter nascido no ano 4 a.C. – o calendário romano-cristão teria um erro de cerca de 4 anos. Tampouco adiantaria chegar a Belém no dia 25 de dezembro. Em primeiro lugar, porque ninguém sabe o dia e a data em que Jesus nasceu. O mês de dezembro foi fixado pela Igreja no ano 525 porque era a mesma época das festas pagãs de Roma. E o segundo problema é que provavelmente Jesus não nasceu em Belém. "Há quase um consenso entre os historiadores de que Jesus nasceu em Nazaré", diz o padre Jaldemir Vitório, pesquisador do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte.
Então por que o evangelho de Mateus diz que o nascimento foi em Belém? Vitório explica que o texto segue o gênero literário conhecido por midrash. Basicamente, o midrash é um forma de contar a história da vida de alguém usando como pano de fundo a biografia de outras personalidades históricas. No caso de Jesus, ele explica, a referência a Belém é feita para associá-lo ao rei Davi do Antigo Testamento – que, segundo a tradição, teria nascido lá. Mas as associações não parariam por aí. Assim como o nascimento em Belém, a terrível execução de recém-nascidos ordenada por Herodes e a fuga de Maria e José para o Egito também teriam sido uma "licença poética do texto", dessa vez para simbolizar que Jesus é o novo Moisés – já que essa narrativa é bem semelhante ao que se contava da vida do patriarca bíblico. "Isso não foi uma criação maquiavélica para glorificar Jesus, era apenas o estilo literário da época", diz Vitório.
Mas se essas passagens são representações e não fatos históricos, o que um viajante no tempo encontraria de semelhante às imagens estampadas nos cartões de Natal de hoje? "Jesus deve ter nascido numa casa de camponeses extremamente pobres, cercada de animais", diz Gabriele Cornelli, professor de teologia e filosofia da Universidade Metodista de São Paulo. "Cresceu numa das regiões mais pobres e turbulentas daquela época."

Um judeu pobre da Galiléia
Um vilarejo de trabalhadores rurais numa encosta de serra com, no máximo, 400 habitantes. Segundo os arqueólogos, essa era a cidade de Nazaré no tempo de Jesus. De tão pequena, a vila praticamente não é citada nos documentos da época. "As escavações arqueológicas na cidade não encontraram nenhuma construção importante que datasse do tempo de Jesus", diz o historiador John Dominic Crossan. "Em compensação, foram encontradas pequenas prensas de azeitonas para a fabricação de azeite, prensas de uvas para vinho, cisternas de água, porões para armazenar grãos e outros indícios de uma vida agrária de subsistência."
A casa em que Jesus cresceu devia ter chão de terra batida, teto de estrados de madeira cobertos com palha e muros de pedras empilhadas com barro, lama ou até uma mistura de esterco e palha para fazer o isolamento. Ao entrar na casa, talvez alguém lhe oferecesse água tirada de uma cisterna servida num dos muitos vasilhames de pedra e barro achados pelos arqueólogos na região – a água era preciosa, já que a chuva era escassa. Para comer, havia pão, azeitona, azeite e vinho e um pouco de lentilhas refogadas com alguns outros vegetais sazonais, servido às vezes no pão (que você deve conhecer como pão árabe). Com sorte, nozes, frutas, queijo e iogurte eram complementos bem-vindos, além de um peixe salgado vez ou outra. Segundo os arqueólogos, a carne era rara, reservada apenas para celebrações especiais.
Para garantir o sustento, as famílias precisavam ter vários filhos que ajudassem no duro trabalho no campo. "É pouco provável que Jesus tenha sido filho único", diz o historiador Gabriele Cornelli. "Assim como um menino de roça que vive em comunidades pobres no interior, ele deve ter crescido cercado de irmãos." Mesmo pesquisadores católicos como o padre John P. Meier, autor dos 4 volumes da série Um Judeu Marginal, sobre o Jesus histórico, dizem que é praticamente insustentável o argumento de que, no Novo Testamento, "irmão" poderia significar "primo". "A palavra grega adelphos, usada para designar irmão, provavelmente foi usada no sentido literal", diz Meier. Sua conclusão reforça ainda mais as chances de que o ossário atribuído a são Tiago, suposto irmão de Jesus, possa ser verdadeiro.
E quanto à profissão de Jesus? O historiador Gabriele Cornelli diz que, baseado nas parábolas atribuídas a ele, é muito provável que Jesus tenha sido um camponês. Mas José não era carpinteiro e seu filho não o teria seguido na profissão? O professor de ciências da religião Pedro Lima Vasconcellos, da PUC de São Paulo, diz que a palavra carpinteiro (tekton) usada no Novo Testamento pode significar também "biscateiro", no sentido de uma classe inferior que faz serviços manuais diversos. Uma das hipóteses é a de que Jesus pode ter trabalhado no campo e, eventualmente, atuado em algumas obras de construção civil. Os arqueólogos descobriram que, a apenas 6 quilômetros de Nazaré, vários edifícios em estilo greco-romano estavam sendo construídos na cidade de Séforis. "É possível que Jesus tenha trabalhado lá", diz Vasconcellos. A construção era apenas uma das várias obras que estavam sendo erguidas por Herodes Antipas, governante da Galiléia.
Além das intervenções em Séforis, os edifícios construídos nas cidades de Tiberíades e Cesaréia Marítima (o nome foi dado em homenagem ao imperador Júlio César) tornavam a região cada vez mais parecida com as cidades romanas. "O problema é que todas essas obras representavam um fardo a mais aos camponeses pobres, que já pagavam muitos impostos", diz o historiador Richard Horsley. "Não é à toa que surgiram nesse período vários movimentos populares de contestação ao poder romano, do qual Jesus era mais um representante."

Messias de um novo reino
No governo de Herodes Antipas (4 a.C. a 39 d.C.), enormes palácios foram construídos na Galiléia, muitos para abrigar a elite judaica que dominava os judeus pobres na região. O esquema de poder na Galiléia, assim como em outras regiões de Israel, funcionava num sistema de clientela: para reinar, Herodes contava com o apoio precioso dos romanos. Estes, por sua vez, exigiam que ele recolhesse impostos para Roma e se responsabilizasse pela repressão de qualquer contestação ao poder imperial. Sob essas condições, Roma permitia que os judeus cultuassem o seu Deus único, Javé, em vez de celebrarem as várias divindades que povoavam o panteão romano. Estando bom para ambas as partes, o equilíbrio de poder era mantido. "O problema é que apenas os romanos e uma elite sacerdotal judaica eram beneficiados", diz André Chevitarese. "A maioria dos judeus tinha que trabalhar cada vez mais para sustentar essas duas classes."
Ninguém sabe ao certo até que ponto Jesus começou a sua pregação motivado por esse sentimento de injustiça social. Até mesmo porque a tentativa de retratá-lo como um revolucionário político (e não um líder espiritual) parece fazer pouco sentido considerando-se a época em que ele viveu. "Essa distinção de uma consciência política separada da espiritualidade é uma invenção dos pensadores ocidentais modernos, como Maquiavel", diz Chevitarese. "Para os movimentos apocalípticos de então, o modelo de sociedade perfeita é o Reino de Deus, algo que para essas pessoas estava prestes a se concretizar."
Os estudiosos dizem que há uma dificuldade natural de quem vive nas sociedades modernas de entender a verdadeira dimensão da palavra apocalipse na época de Jesus. "Algumas pessoas hoje entendem o apocalipse como um futuro distante, o fim dos tempos que chegará somente quando todos estiverem mortos", diz Paulo Nogueira, professor de literatura do cristianismo primitivo da Universidade Metodista de São Paulo. "Na época de Jesus, os movimentos apocalípticos viam esse futuro como algo para daqui a alguns dias, quando o Reino dos Céus fosse se sobrepor ao Reino da Terra." Era preciso se preparar logo.
Para os judeus pobres, estava claro que o tal reino terrestre prestes a ruir era aquele formado por Roma, pelos governantes locais e pela elite judaica representada pelo suntuoso Templo de Jerusalém. E como as pessoas deveriam se preparar para o advento do novo reino? Um bom começo era ouvir as profecias de um dos mais conhecidos pregadores da época: João Batista. "Naquele tempo, a figura de João era mais importante do que a de Jesus, que somente se tornou uma ameaça a Roma depois da crucificação", diz o historiador John Dominic Crossan. Depois de ouvir suas profecias, as pessoas podiam se preparar para a chegada da nova era submetendo-se a um ritual de imersão na água. Esse ritual é o famoso batismo. "Ao entrar e sair da água, as pessoas sentiam-se como se estivessem deixando para trás os pecados e renascendo purificadas para o novo reino de Deus", diz Nogueira.
A maioria dos historiadores acredita que João Batista, de fato, deve ter batizado Jesus adulto. "Não deve ter sido fácil para os evangelistas explicar por que o messias foi batizado, já que, como enviado de Deus, ele é que devia batizar os outros", diz André Chevitarese. Mas ele explica que o evangelho logo "resolve" a polêmica ao narrar que, precisamente na hora do batismo, a pomba do Espírito Santo aparece sobre Jesus e João Batista diz que ele é que deveria ser batizado.
"As fontes que estão nos ajudando a compreender esses movimentos apocalípticos são os Manuscritos do Mar Morto", diz Paulo Nogueira. Descobertos em 1947, os manuscritos foram encontrados no convento de Qumran, uma espécie de condomínio de cavernas habitado pelos essênios, grupos de judeus que viviam como monges seguindo uma rígida disciplina de orações e uma dieta rigorosa. "Apesar de não revelarem nada diretamente sobre Jesus, eles mostram como os cultos apocalípticos já estavam disseminados nessa época", diz Nogueira. Há até quem defenda a hipótese de que Jesus tenha tido uma ligação direta com os essênios. Do que os crentes e céticos parecem não ter dúvida é que o batismo de João Batista foi um divisor de águas na vida de Jesus. A partir dali, ele teria se retirado para o deserto para depois dar início à trajetória de sermões e milagres que o levaria à cruz.

Milagres subversivos
Se os historiadores e arqueólogos estão conseguindo reconstituir o ambiente em que Jesus viveu, tudo muda da água para o vinho quando o assunto são os milagres. Afinal, como um pesquisador pode estudar objetivamente feitos considerados sobrenaturais? Uma moda no passado (que até hoje tem adeptos nos EUA) foi a tentativa de explicar a origem de alguns desses fenômenos como tendo causas naturais. Você provavelmente conhece algumas dessas teses: a estrela de Davi no nascimento de Jesus era na verdade o cometa Halley, Lázaro foi ressuscitado por Cristo porque estava em coma... "Explicações desse tipo conseguem às vezes ser mais absurdas do que o próprio milagre", diz André Chevitarese.
Os pesquisadores sabem que no tempo de Jesus a doença estava associada à impureza. "A grande preocupação da lei judaica, já prevista em textos como o Levítico, era demarcar o que é puro e o que não é puro", diz Manuel Fernando Queiroz dos Santos Júnior, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. "E as doenças de pele, as mais visíveis, logo eram associadas à impureza espiritual." Especialista em hanseníase, o professor diz que o que a Bíblia chama de lepra servia para nomear, na verdade, todas as doenças de pele na época, de eczemas a micoses. "Quem lê a Bíblia sem atentar para esse detalhe tem a impressão errônea de que existia uma verdadeira epidemia da doença na época de Jesus." Por causa desse erro, os leprosos foram segregados por séculos como portadores de uma doença impura e terrível. Segundo os historiadores, essa associação perversa entre doença e impureza (ou pecado) terminava favorecendo a elite judaica do Templo de Jerusalém. "Afinal, para se curar, o doente tinha que pagar mais taxas e oferecer mais sacrifícios no templo", diz Crossan. "Isso gerava para o doente um ciclo interminável de sofrimento e dívidas." O templo era comandado por uma casta sacerdotal que detinha o monopólio de conduzir os fiéis aos rituais de purificação – que, na época, incluíam o sacrifício de animais como cordeiros (quem não tinha posses para tanto podia sacrificar uma pomba branca comprada no mercado do templo, o que garantia uns trocados aos sacerdotes).
Imagine agora o mal-estar que os sacerdotes deviam sentir ao ouvir relatos de que, com um simples toque, um judeu pobre da Galiléia andava curando doentes, declarando, com esse gesto, que a pessoa estava livre dos pecados. "Hoje é difícil de entender como um ato desses era radicalmente subversivo", diz Richard Horsley. Ele diz que Jesus não estava só. "Uma série de outros curandeiros também usavam esse ritual para desafiar o poder do templo naquela época", diz o historiador.
Como Jesus conseguia curar as pessoas? Poucos se arriscam a dar palpites. O certo é que, ao se misturar com doentes, mendigos, gentios, prostitutas, enfim, toda classe de pessoas que eram consideradas impuras, Jesus incomodou a maioria dos grupos judaicos da época. Entre esses incomodados se incluíam os fariseus, membros de uma escola religiosa que insistia na completa separação entre os judeus e os gentios (fariseu quer dizer "o que está separado"). Eram provavelmente hostis a Jesus e não deviam entender por que ele comia na mesma mesa dos "impuros". Jesus provavelmente também não agradou aos saduceus, judeus que não acreditavam na imortalidade da alma nem nos anjos, muito menos nos milagres de Jesus. "Seu estilo de ensinar e de viver desagradou muitos judeus, que o colocaram à margem do judaísmo palestino", diz John P. Meier, no livro Um Judeu Marginal.
A escolaridade de Jesus é outro ponto polêmico. Para muitos, ele era analfabeto. "Somente uma ínfima parcela da população que trabalhava para os governantes sabia ler e escrever", diz Richard Horsley. "Não acredito que ele fizesse parte dessa parcela." Então, como explicar o trecho do evangelho que o retrata lendo numa sinagoga? "A palavra ler no evangelho pode significar recitar", diz Horsley. Juan Arias, autor do livro Jesus, Esse Grande Desconhecido, discorda. "Apesar de ter vindo de uma família muito pobre, é difícil imaginar que as discussões polêmicas que ele teve com seus contemporâneos possam ter sido feitas por um homem que não sabia ler", diz Arias. Mesmo que não tenha sido analfabeto, o judeu pobre da Galiléia não deve ter chamado a atenção da elite intelectual que vivia na época. A não ser, talvez, pelos tumultos que ele deve ter causado quando resolveu pregar diretamente na cidade de Jerusalém.

De Jesus a Cristo
Imagine Nova York como o centro espiritual do mundo muçulmano. Ou mesmo a Basílica de São Pedro, no Vaticano, transformada numa mesquita dedicada ao profeta Maomé. Improvável, não? "Foi algo dessas proporções que aconteceu com a expansão do cristianismo", diz André Chevitarese. "Em cerca de 3 séculos, a crença de uns poucos seguidores se tornou a religião oficial do Império Romano, o mesmo império que havia ordenado a sua morte." Como isso ocorreu?
Para os cristãos, a resposta é bastante simples: Jesus ressuscitou. Essa seria a evidência de que o homem crucificado não era, afinal, apenas um homem, e sim Cristo, o Messias esperado havia muito tempo pelos judeus. Mas como entender a ressurreição? "Nenhum outro tipo de milagre se choca mais com a mentalidade cética da moderna cultura ocidental", diz John Meier. Para ele, ficar especulando sobre o que aconteceu com o corpo de Jesus é inútil. "A essência da crença na ressurreição é que, ao morrer, Jesus ascendeu em sua humanidade à presença de Deus", diz Meier. "Descobrir qual a ligação dessa humanidade com o seu corpo físico não é matéria dos historiadores."
Mas, se a ressurreição é uma questão de fé e não de história, os estudiosos estão pelo menos conseguindo esclarecer detalhes sobre o terrível momento que a teria antecedido: a crucificação. Tudo começou em 1968, quando foi descoberto na região de Giv’at há-Mivtar, no nordeste de Jerusalém, o único esqueleto de um crucificado conhecido pela ciência. Após a análise do corpo, concluiu-se que os braços não foram pregados, mas amarrados na cruz. Já as pernas foram colocadas em ambos os lados da base vertical de madeira, com pregos segurando os calcanhares. "Uma revelação surpreendente sobre a morte na cruz não surgiu da descoberta de esqueletos, mas da falta deles", diz Pedro Lima Vasconcellos, da PUC de São Paulo. "Afinal, se centenas e até milhares de pessoas foram crucificadas na época, por que apenas um esqueleto foi encontrado?"
O historiador John Dominic Crossan diz que há uma razão terrível para isso: "As 3 penas romanas supremas eram morrer na cruz, no fogo e entregue às feras", diz Crossan. "O que as tornava supremas não era a sua crueldade desumana ou sua desonra pública, mas o fato de que não podia restar nada para ser enterrado no final." No caso da crucificação, o corpo era exposto aos abutres e aos cães comedores de carniça. Como um ato de terrorismo de Estado, a extinção do cadáver também tinha como vantagem para as autoridades evitar que o túmulo do condenado se tornasse local de culto e resistência.
Mesmo que ninguém saiba o que ocorreu após a morte de Jesus (alguns historiadores acham razoável que a família e os amigos pudessem ter reivindicado o seu corpo), o fato é que seus seguidores passaram a relatar suas aparições. "Não se deve subestimar o poder dessas experiências em nome do racionalismo", diz Paulo Nogueira, professor da Universidade Metodista de São Paulo. "Afinal, as pessoas tinham visões, entravam em transe. É uma simplificação, por exemplo, ficar tentando encontrar razões sociológicas para explicar a experiência mística responsável pela conversão de Paulo."
Nascido na cidade de Tarso, na atual Turquia, Paulo (são Paulo, para os católicos) talvez seja o homem que, sozinho, fez mais pela expansão do cristianismo que qualquer outro dos seguidores de Jesus. O curioso é que, antes de se converter, ele era uma espécie de agente policial encarregado de perseguir os cristãos. "Sua conversão foi tão surpreendente na época como seria hoje ver um embaixador israelense se converter à causa palestina", diz Monica Selvatici, historiadora da Universidade Metodista de São Paulo. "Suas idéias terminaram afastando o cristianismo do judaísmo da época."
Ela explica que, depois da morte de Jesus, não havia uma distinção clara entre judeus e cristãos. "Os seguidores de Jesus eram apenas judeus que defendiam a tese de que ele era o Messias, ao contrário daqueles que não o reconheciam como tal", diz Mônica. Como falava grego muito bem e foi um dos cristãos que mais viajaram, ele discordava dos judeus-cristãos que defendiam a tese de que os gentios convertidos tinham que seguir rigorosamente a lei judaica. Em suas cartas (epístolas), são famosas as polêmicas travadas com Tiago (são Tiago, para os católicos), suposto irmão de Jesus, que teria sido um defensor de um cristianismo mais fiel ao judaísmo. Mas a idéia central de Paulo, resumida na frase de que "o verdadeiro cristão se justifica pela fé e não pelos trabalhos da lei", acabou prevalecendo. Os gentios podiam agora se converter sem tantos empecilhos e o cristianismo ganhou novas fronteiras. "Paulo ajudou a tirar de Jesus a imagem de um Messias para o povo hebreu, transformando-o num salvador de todos os povos", diz Mônica. "Jesus deixou de ser um fenômeno regional para ganhar um caráter universal."
Mas o que levaria um cidadão romano a trocar os seus deuses para cultuar um judeu da Galiléia? "O cristianismo trouxe uma idéia de salvação da alma que não existia na religião romana", diz Pedro Paulo Funari, professor de história e arqueologia da Unicamp. "A religião romana tinha um aspecto formal, público, pouco ligado às inquietações da vida depois da morte". Mas Funari explica que, apesar do formalismo das crenças romanas, a idéia de salvação da alma já estava difundida na população pela influência de algumas religiões orientais, como o culto a Íris e Osíris, do Egito. "Isso deve ter facilitado ainda mais a expansão do cristianismo em Roma", diz Funari.
O ápice dessa expansão se deu quando o imperador romano Constantino converteu-se ao cristianismo, no século 4. Ninguém sabe ao certo se ele foi motivado mais por dilemas espirituais do que razões políticas (afinal, ao se converter, ele pôde contar com o apoio dos cristãos e com a estrutura de uma Igreja já bem organizada.)
O certo é que, alguns séculos depois, a cruz, imagem brutal da sua crucificação, foi usada para invocar a guerra e a paz entre os povos. E Yeshua, o judeu pobre que morreu praticamente despercebido durante a Páscoa em Jerusalém, já era conhecido por boa parte do mundo como o Cristo. O mesmo Cristo cujo nascimento passou a ser celebrado todos os anos, no mês de dezembro, no dia de Natal.

O Jesus Histórico - John Dominic Crossan, Imago, 1994
Excavating Jesus - John Dominic Crossan & Jonathan L. Reed, Harper San Francisco, 2001
Jesus, uma Biografia Revolucionária - John Dominic Crossan, Imago, 1995
Jesus As a Figure in History - Mark Allan Powell, Westminster John Knox Press, 1998
Um Judeu Marginal - John P. Meier, Imago,1993 (série em 4 volumes)
Bandidos, Profetas e Messias - Movimentos Populares no Tempo de Jesus Richar A. Horsley, John S. Hanson, Paulus, 1995
Jesus, Esse Grande Desconhecido - Juan Arias, Objetiva, 2001
Cristo – Uma Crise na Vida de Deus - Jack Miles, Companhia das Letras, 2002
Os Homens da Bíblia - André Chouraqui, Companhia das Letras, 1990
História da Vida Privada – Do Império Romano ao Ano Mil - Philippe Ariès e Georges Duby (org.), Companhia das Letras, 1992
Bíblia de Jerusalém - Paulus, 2002

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